quarta-feira, 20 de agosto de 2014

OBJEÇÕES PRAGMÁTICAS AO NOVO CPC


ACESSE O INTEIRO TEOR DO SUBSTITUTIVO DE NOVO CPC APROVADO NA CÂMARA:

http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1246935&filename=Tramitacao-PL+8046/2010

O projeto de "novo CPC" não contém muito coisa realmente nova.

Aliás, desde o anteprojeto da Comissão Fux não havia qualquer comprometimento com rupturas estruturais no sistema processual. O que a nova codificação fará, propriamente, será dar um tratamento mais organizado e sistemático à "colcha de retalhos" em que se transformou o Código Buzaid (1973), após sucessivas reformas legislativas pontuais. Do ponto de vista pragmático, esse objetivo não é suficiente para justificar um novo Código. 

Quem se dispuser a ler o texto aprovado na Câmara dos Deputados (2014) - e agora em discussão no Senado - vai se surpreender com a maciça repetição de artigos já existentes no CPC em vigor. A certa altura, lendo o Livro II, que trata do Processo de Execução, parece que estamos a ler o código atualmente em vigor. Pouca coisa muda. No processo de conhecimento, acaba o rito sumário (e com ele a oralidade processual), dando espaço à hegemonia do rito comum, que nada mais é que o nosso tradicional rito ordinário, com as mesmíssimas fases. A simplificação processual prometida é pouco significativa: continua a reconvenção, a incompetência relativa poderá ser arguida na contestação, acaba o agravo retido, mas o agravo de instrumento se transforma num recurso em sentido estrito (como no processo penal), acaba o recurso de embargos infringentes, mas, em contrapartida, em caso de julgamento por maioria, a sessão deverá continuar com a presença de outros julgadores. A apelação continua com efeito suspensivo automático. O rito ordinário, como disse, continua sendo o mesmo.

Mais do que isso, o projeto não se baseia em qualquer tipo de diagnóstico do sistema processual, nem foi buscar lastro em pesquisas empíricas. Ignora essa importantíssima diretriz pragmática. Utiliza, portanto, apenas os expedientes da razão e, talvez, alguma intuição profissional dos juristas por trás dos parlamentares. Só lógica e coerência interna não são suficientes para boas soluções processuais.



Pior é o desrespeito ao momento de transição por que passa o Poder Judiciário. Uma codificação feita para durar "50 anos", que se baseia, quase que completamente, nos autos de papel, físicos, destinados à extinção em alguns anos!! Continuam o agravo de instrumento, a autuação, a restauração de autos, a carga de processos etc. Um novo CPC que não é pensado para o processo eletrônico pode atrapalhar o processo eletrônico. Não será de surpreender que, em poucos anos, voltem a ocorrer ondas de reformas do "novo" CPC... 

Mas existem retrocessos. Sérios e graves.
Cito três dos mais expressivos:

1º) Proibição de utilização do sistema BACENJUD para efetivação da tutela antecipada; restrição do BACENJUD nas execuções provisórias.

Art. 298. O juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para a efetivação da tutela antecipada.
Parágrafo único. A efetivação da tutela antecipada observará as normas referentes ao cumprimento provisório da sentença, no que couber, vedados o bloqueio e a penhora de dinheiro, de aplicação financeira ou de outros ativos financeiros. (grifei)

Isso só pode ser piada de mau gosto. Esse parágrafo surgiu agora, na última redação do texto da Câmara, em 2014. Nem é preciso ser pragmatista para objetar essa restrição. Defere a tutela antecipada, mas não pode efetivá-la. Há completa dissintonia do parágrafo com o caput e com o poder geral de efetivação das decisões judiciais, previsto no art. 139, IV do projeto.

Art. 870, §9º. No cumprimento provisório da sentença, somente se admite a penhora de recursos financeiros nos termos deste artigo se já houver, na fase de conhecimento, decisão de tribunal de justiça ou tribunal regional federal.

Também não se consegue conceber a razão dessa restrição, sabendo-se que a penhora de dinheiro é prioritária (art. 851, §1º). Vai ver o deputado que "redigiu" o parágrafo acha esse tal de BACENJUD eficiente demais...

2º) A existência de título executivo extrajudicial de obrigação líquida, certa e exigível não inibe ação de conhecimento

Art. 801. A existência de título executivo extrajudicial não impede a parte de optar pelo processo de conhecimento, a fim de obter título executivo judicial.

Parece que o legislador desconhece completamente as estatísticas acerca do número de processos de assolam o Poder Judiciário. Vejam o meu post sobre o Justiça em Números do CNJ: hoje, certamente, já contamos com mais de 100.000.000 de processos. Mesmo assim, quem já desfruta de título executivo extrajudicial poderá acionar o Judiciário através de ação de conhecimento!!!! E a falta de interesse processual? Deixou de existir? É solução antipragmática que fragiliza a técnica dos títulos executivos extrajudiciais como meio mais fácil e direto para a resolução de litígios.

3º) O valor obtido com as astreintes (multa coercitiva destinada a fazer cumprir ordens judiciais) é destinado exclusivamente ao autor 

É fato por todos sabido que os tribunais têm sido fixado as astreintes em valores insuficientes, quando não irrisórios, pelo medo de enriquecer desproporcionalmente o autor. Essa situação se deve ao entendimento equivocado sobre o destinatário do produto da multa - o autor - muito embora o atual art. 461, §4º nada fale a respeito. 
A Comissão Fux sensibilizou-se com o problema, propondo uma divisão mais adequada do produto da multa:

Art. 503. 
§ 5º O valor da multa será devido ao autor até o montante equivalente ao valor da obrigação, destinando-se o excedente à unidade da Federação onde se situa o juízo no qual tramita o processo ou à União, sendo inscrito como dívida ativa.
§ 6º Sendo o valor da obrigação inestimável, deverá o juiz estabelecer o montante que será devido ao autor, incidindo a regra do § 5º no que diz respeito à parte excedente.
§ 7º O disposto no § 5º é inaplicável quando o devedor for a Fazenda Pública, hipótese em que a multa será integralmente devida ao credor.

A solução foi pragmática. Satisfez o intuito "indenizatório", destinando parte da multa para o autor (até o limite do seu direito no processo), e deixou os juízes e tribunais tranquilos para fixar multas altas suficientes para coagir, pois o excedente passaria a ser destinado ao Estado. O único problema não resolvido foi em relação à Fazenda Pública devedora (§7º), o que nos obrigou a redigir uma nota técnica a respeito, enquanto membro da Comissão de Reformas Processuais da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), a qual foi acolhida no Substitutivo do Senado Federal, passando o tema a ser assim disciplinado:

Art. 551.
§ 5º O valor da multa será devido ao exequente até o montante equivalente ao valor da obrigação, destinando-se o excedente à unidade da Federação onde se situa o juízo no qual tramita o processo ou à União, sendo inscrito como dívida ativa.
§ 6º Sendo o valor da obrigação inestimável, deverá o juiz estabelecer o montante que será devido ao autor, incidindo a regra do § 5º no que diz respeito à parte excedente.
§ 7º Quando o executado for a Fazenda Pública, a parcela excedente ao valor da obrigação principal a que se refere o § 5º, será destinada a entidade pública ou privada, com finalidade social.

Pronto!! Resolvida a situação da destinação da multa coercitiva!! Astreintes fortalecidas para garantir maior autoridade às decisões judiciais...
...até chegar à Câmara dos Deputados...
que resolveu ignorar completamente a experiência e realidade, abolindo os avanços conseguidos no Senado, e destinando completamente ao autor o produto da multa (cf. art. 551, § 2º), mantendo as coisas no mesmo estado em que estão hoje!!! PARA QUE UM CPC NOVO?

Outras objeções pragmáticas ainda podem ser formuladas, como a contagem de prazos apenas em dias úteis (art. 219) e a inconstitucional suspensão dos prazos processuais, audiências e julgados no período de 20 de dezembro a 20 de janeiro (art. 220), como atendimentos a exigências corporativas que pouco caso fazem dos direitos fundamentais à duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, CF) e à tutela jurisdicional efetiva (art. 5º, XXXV, CF). 

São os riscos de um novo Código. Vale a pena?


CORNELIS DE WAAL. Sobre Pragmatismo. Edições Loyola.
Excelente panorama histórico do pensamento pragmatista

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

QUEM TEM MEDO DO PRAGMATISMO?

Os pragmatistas americanos clássicos: Charles Pierce e William James (em cima);
John Dewey e George Mead (embaixo)

O atual paradigma do direito processual civil está esgotado. O racionalismo não consegue mais dar conta dos problemas envolvendo o sistema processual e o Poder Judiciário. E as metodologias processuais até agora formuladas - o processualismo, o instrumentalismo e o neoprocessualismo - não conseguem se desgarrar das soluções exclusivamente calcadas no pensamento racionalista. Não ouvem a experiência. Propõem soluções sem qualquer respaldo em dados empíricos sobre a realidade. Não testam soluções, nem se preocupam com as consequências práticas do que é proposto. O acerto se dá quase sempre pelo acaso; o erro é corrigido por novas leis e novos códigos. E assim caminha a humanidade...ao menos no Brasil, com seus mais de 92.000.000 de processos.
Como transitar para um novo paradigma? Um paradigma que respeite a experiência e se preocupe com o funcionamento efetivo do prestação jurisdicional; um paradigma no qual as soluções não sejam engessadas por conceitos e consigam, assim, atingir aos escopos processuais.
O pragmatismo jurídico se apresenta como método para propiciar esse avanço rumo a um novo paradigma para o processo civil:


Paradigma racionalista
(processualismo/instrumentalismo/neoprocessualismo)
PRAGMATISMO JURÍDICO

Paradigma empirista
(método processual pragmático)


O método processual pragmático é um novo método para o direito processual civil baseado no pragmatismo, construção filosófica original, produzida nos Estados Unidos, a partir do final do século XIX.
Ele funciona através da aplicação de quatro diretrizes, as quais refletem as principais características do pragmatismo filosófico.
As diretrizes do método processual pragmático proposto são as seguintes:

1º) DIRETRIZ ANTIFUNDACIONISTA: Despreze as diferenciações entre categorias ou conceitos processuais que não revelem implicações práticas;

2º) DIRETRIZ ANTIRRACIONALISTA: Não descarte uma solução processual apenas porque ela não corresponde a um conceito, sistema, regra ou princípio do direito processual;

3º) DIRETRIZ CONSEQUENCIALISTA: Entre duas ou mais soluções processuais, adote aquela que apresente as melhores consequências práticas em termos de prestação jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva;


4º) DIRETRIZ EMPIRISTA: Avalie as consequências práticas de uma solução processual de acordo com a experiência.

A minha sincera expectativa é que o leitor do meu blog sinta-se, de alguma forma, incomodado com as diretrizes do método processual pragmático. Algo como o que as plateias das conferências de William James devem ter sentido lá no início do século XX. Se não houver incômodo ou perplexidade, o pragmatismo não estará funcionando na transição paradigmática contra o racionalismo. Quebrando paradigmas...

"O pragmatismo volta as costas resolutamente e de uma vez por todas a uma série de hábitos inveterados, caros aos filósofos profissionais. Afasta-se da abstração e da insuficiência, das soluções verbais, das más razões a priori, dos princípios firmados, dos sistemas fechados, com pretensões ao absoluto e às origens. Volta-se para o concreto e o adequado, para os fatos, a ação e o poder. O que significa o reinado do temperamento empírico e o descrédito sem rebuços do temperamento racionalista. O que significa ar livre e possibilidades da natureza, em contraposição ao dogma, à artificialidade e à pretensão de finalidade na verdade." (William James)