Assumindo a opção evolucionista, no sentido que a
razão não é um presente de uma divindade, que destacaria o homem da sua
animalidade, mas uma complexidade adaptativa decorrente da necessidade de
sobreviver à adversidade ambiental, o pragmatismo é humanista. Mas não
se trata de render homenagens à notabilidade das capacidades humanas (culto à
humanidade[1]),
mas sim prestigiar a ideia de que “não há outro legislador senão o próprio homem”,[2] a
quem compete definir os seus rumos no mundo, agindo sobre ele.
Aliás, FERDINAND SCHILLER concebia o pragmatismo como a aplicação do humanismo à teoria do conhecimento,[3] na medida em que
human interest, then, is vital to the existence
of truth: to say that the truth has consequences and that what has none is meningless,
means that it has a bearing upon some human interest. Its ‘consequences’ must
be consequences to some one for some purpose.[4]
Dentro do projeto humanista, o pragmatismo conversa
bem com o existencialismo, iniciado com SOREN KIERKEGAARD (1813-1855),
mas densificado, dentre outros, por JEAN PAUL SARTRE (1905-1980).
De fato, o existencialismo ateu de SARTRE parte do
princípio de que, no ser humano, a existência precede a essência, ou
seja, “o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só
depois se define”.[5]
Não há, portanto, natureza humana, porque não há Deus ou qualquer entidade
superior e anterior para concebê-la. Assim, “o homem não é mais que o que ele
faz”; é, “antes de mais nada, um projeto que se vive subjetivamente”.[6]
Diante disso, SARTRE afirma que “a vida não tem sentido a priori. Antes
de viverdes, a vida não é nada; mas de vós depende dar-lhe um sentido, e o
valor não é outra coisa senão esse sentido que escolherdes”.[7]
Nesse sentido, WILLIAM JAMES, estabelecendo diferenças entre o racionalismo e o
pragmatismo, é também existencialista ao afirmar que “o contraste essencial é
que, para o racionalismo, a realidade já está pronta e completa desde toda a
eternidade, enquanto para o pragmatismo está ainda sendo feita, e espera parte
de seu aspecto do futuro”.[8]
A vida sem sentido a priori, o “confronto
desesperado entre a interrogação humana e o silêncio do mundo”,[9]
traduzida pelo “desespero” de KIERKEGAARD,[10] pela
“náusea” de SARTRE,[11]
pelo “absurdo” de ALBERT CAMUS (1913-1960)[12]
ou pela “angústia” de GRACILIANO RAMOS (1892-1953),[13]
coaduna-se com a negação pragmatista das razões a priori,[14]
com a realidade que “está ainda sendo feita”.
Da esq. p/ dir.: Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Jasper, Chestov, Marcel, Sartre, Camus
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Mas ao contrário do que essas palavras possam
sugerir, nem o existencialismo, nem o pragmatismo, são pessimistas ao aceitarem
o abandono e o absurdo de uma vida sem sentido a priori, sem as
ilusões de proteção ou de orientação sobrenaturais. O existencialismo
pragmático é otimista, pois devolve ao homem a responsabilidade por sua
própria vida e seu próprio destino, libertando-o do determinismo,[15]
ao mesmo tempo em que lhe dá ferramentas para (re)construir o significado de
sua existência.[16]
E tal qual o pragmatismo, o existencialismo também
se revela como uma filosofia da ação,[17]
na medida que compreende o homem, em essência, senão como seu projeto, que “só
existe na medida em que se realiza”, não sendo, portanto, “nada mais do que o
conjunto dos seus atos, nada mais do que a sua vida.”[18] ALBERT
CAMUS, em um dos seus textos filosóficos anteriores à dissidência com SARTRE,
realiza verdadeira proclamação pragmática, ao defender que
Se
eu me pergunto por que julgo que tal questão é mais premente que tal outra,
respondo que é pelas ações a que ela se compromete. Nunca vi ninguém morrer por
causa do argumento ontológico. Galileu, que sustentava uma verdade científica
importante, abjurou dela com a maior tranquilidade assim que viu sua vida em
perigo. Em certo sentido, fez bem. Essa verdade não valia o risco da fogueira.
É profundamente indiferente saber qual dos dois, a Terra ou o Sol, gira em
torno do outro. Em suma, é uma futilidade.[19]
Talvez a diferença entre ambas as correntes do
pensamento humanista seja apenas de amplitude, pois o pragmatismo não se
pretende como explicitação do lugar do homem no mundo, como o existencialismo
parece se apresentar. Não há exclusão entre elas, senão diferença de propósitos
sobre as mesmas bases. Como salienta RICHARD RORTY, tanto o existencialismo de
SARTRE, como o pragmatismo de JAMES, tentaram convencer os seres humanos que
não deviam mais construir substitutos de Deus, complementando, assim, o projeto
humanista iniciado com o Renascimento e o Iluminismo.[20]
[1]
SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo, p. 21.
[2]
SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo, p. 21.
[3]
WAAL, C. de. Sobre pragmatismo, p.86.
[4] SCHILLER, F. C. S. Studies in
humanism, p. 5. Tradução livre: “Interesse humano,
então, é vital para a existência da verdade: dizer que a verdade tem
consequências e que aquilo que não tem consequências não tem significado,
significa que ela tem relevância para com algum interesse humano. As suas
consequências devem ser para alguém por algum propósito.”
[5]
SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo, p. 6.
[6]
SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo, p. 6.
[7]
SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo, p. 21.
[8]
JAMES, W. Pragmatismo, p. 138.
[9]
CAMUS, A. O homem revoltado, p. 16.
[10]
cf. KIERKEGAARD, S. O desespero humano.
[11]
cf. SARTRE, J P. A náusea.
[12]
“Um mundo que se pode explicar, mesmo com raciocínios errôneos, é um mundo familiar.
Mas num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, pelo contrário,
o homem se sente um estrangeiro. É um exílio sem solução, porque está privado
das lembranças de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida.
Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o
sentimento do absurdo.” (CAMUS, A. O mito de Sísifo, p. 21).
[13]
cf. RAMOS, G. Angústia.
[14]
JAMES, W. Pragmatismo, p. 47. No mesmo sentido: “Não se fixando
em premissas a priori verdadeiras, não se detendo em propostas
ontológicas, não aceitando os dogmas absolutos, não se apoiando no pressuposto
da dialética materialista, derrubando os fetiches metafísicos, desprezando as
respostas universais, desconstituindo o estatuto conservador das políticas
conservadoras, abalando as bases dos movimentos burgueses, o existencialismo,
no entanto, possui um apego, que irá ser exatamente o apego pelo contingencial,
pelo situacional. Não há nenhum idealismo além do que agora se pode ter, do que
agora se pode identificar como justo ou certo. Nesse sentido, o futuro abre-se
como um leque de possibilidades, e para o futuro as respostas são
inimagináveis, pois na liberdade dos homens mora a responsabilidade de
construí-lo.” (BITTAR, E. C. B.; ALMEIDA, G. A. de. Curso de filosofia do
direito, p. 357-358).
[15]
“Dostoiévski escreveu: ‘Se Deus não existisse, tudo seria permitido’. Aí se
situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se
Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra
em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada,
não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não
será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável;
por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade.
Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou
imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de
nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou
desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem
está condenado a ser livre.” (SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo,
p. 9).
[16]
“Os deterministas, que negam o livre-arbítrio, que dizem que o homem individual
não origina coisa alguma, mas meramente transmite ao futuro o empuxo total dos
acontecimentos cósmicos passados, dos quais é uma expressão sumamente diminuta,
reduzem o homem. (...). Pragmaticamente, livre-arbítrio significa novidades
no mundo, o direito de esperar que em seus elementos mais profundos, como
em seus fenômenos superficiais, o futuro não possa repetir-se identicamente e
imitar o passado. (...) Certamente, a única possibilidade que se pode
reivindicar racionalmente é a possibilidade de que as coisas possam ser melhores.”
(JAMES, W. Pragmatismo, p. 75-77).
[17]
SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo, p. 22.
[18]
SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo, p. 13.
[19]
CAMUS, A. O mito de Sísifo, p. 19.
[20]
RORTY, R.; ENGEL, P. Para que serve a verdade?, p. 61-62.