quinta-feira, 17 de julho de 2014

A LUTA CONTRA O RACIONALISMO NO DIREITO PROCESSUAL

Apresento o pragmatismo como uma importante chave metodológica para a superação do paradigma racionalista do direito processual civil, na expressão consagrada por OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA (1929-2009), em seu Processo e Ideologia, obra magna cuja primeira edição completa dez anos (2004-2014).
Capa da 2ª edição de Processo e Ideologia
 O racionalismo pode ser definido, em termos gerais, como a "atitude de quem confia nos procedimentos da razão para a determinação de crenças ou de técnicas em determinado campo" (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 821). Para os racionalistas, a fonte primordial do conhecimento é a razão. 
Em palavras mais modestas, o racionalista típico é aquele que acredita que usando apenas o pensamento, sem recurso à experiência, é capaz de produzir um conhecimento verdadeiro dotado, na maioria das vezes, de necessidade lógica e validade universal. Ou, de forma ainda mais simples, "os racionalistas com frequência parecem de outro mundo, no sentido que o mundo que eles consideram como o mundo verdadeiro não é o mundo revelado pelos nossos olhos, ouvidos e pontas dos dedos, mas um mundo descrito através de conceitos abstratos e matemática" (HUENEMANN, Charlie. Racionalismo. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 20).
Costumam ser apontados como "pais" do racionalismo: DESCARTES (1596-1650), SPINOZA (1632-1677) e LEIBNIZ (1646-1716).


A construção do Direito Moderno, especialmente após o Iluminismo, foi substancialmente marcado pelo racionalismo. LEIBNIZ  bem demonstra isso quando afirma:
A doutrina do direito é de índole daquelas ciências que não dependem de experiências, mas de definições, não das demonstrações dos sentidos, porém da razão; são, por assim dizer, próprias do direito e não do fato. Portanto, assim como a justiça consiste num certo acordo e proporção, pode entender-se que algo é justo embora não haja quem pratique a justiça, nem sobre quem ela recaia, de maneira semelhante a como os cálculos numéricos são verdadeiros, embora não haja nem quem numere e nem o que numerar, da mesma maneira como se pode predizer de uma coisa, de uma máquina ou de um Estado, que, se tiverem de existir, hão de ser formosos, eficazes e felizes, mesmo que nunca tenham existido. (LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Los elementos de derecho natural. Madrid: Ed. Tecnos, 1991, p. 70-71)
E é evidente que o Direito Processual Civil, nascido na segunda metade do século XIX, não poderia ficar infenso às influências do racionalismo. O problema é que, até os nossos dias, ainda produzimos soluções processuais confiando exclusivamente nos expedientes da razão, sem dar muita bola aos fatos e ao mundo da experiência. O processo civil, especialmente no civil law, ainda rende tributos ao paradigma jurídico racionalista, como já bem denunciou OVÍDIO BAPTISTA. E considero ser essa a principal causa das inúmeras dificuldades que continuamos tendo para conseguir um sistema processual mais apto e adequado às suas missões democráticas.
Repare bem nas afirmações abaixo. Você não as confirma, ao menos na sua maior parte? Elas buscam caracterizar a adesão do nosso processo civil, de uma forma bem simples e direta, ao paradigma racionalista, da "ciência que não depende de experiências, mas de definições":
1º) Conhecemos o direito processual civil abrindo o Código de Processo Civil, na confiança que de que a lei é o Direito; outras vezes, o concebemos a partir de enunciados abstratos contidos em súmulas ou ementas de julgamentos de tribunais, ignorando por completo o contexto fático por trás dos julgados;
2º) Toda vez que o sistema processual vai mal ou não funciona tentamos resolver o problema através de reformas legislativas (não à toa, vem aí um novo CPC); algumas vezes fazemos tais reformas apenas para melhorar conceitos legais ou dar melhor "sistematização" ao conjunto de dispositivos; 
3º) Não se realizam pesquisas empíricas no direito, nem há diagnóstico de realidade sobre o funcionamento do sistema processual (a não ser o Justiça em Números do CNJ);
4º) Existem milhares de livros de processo civil só no Brasil; os cursos e manuais de Direito Processual Civil costumam ser redigidos em cinco ou mais volumes; todos - as exceções são praticamente desconhecidas - trabalham o processo civil apenas através de expedientes da razão e da lógica, formulando teorias abstratas atrás de teorias abstratas, interpretando artigo depois de artigo, com substrato exclusivo em levantamentos bibliográficos. Os periódicos trilham no mesmo caminho. Quanto mais citações bibliográficas um trabalho tem, mais respeitado ele costuma ser;
5º) As soluções processuais, no âmbito legislativo e judicial, são produto exclusivo de operações de subsunção lógica a partir da lei, conceitos doutrinários ou ementas de julgados. O que não se enquadra na regra, no princípio, no conceito ou na súmula/ementa não pode ser usado ou admitido, ainda que possa representar uma melhoria da prestação jurisdicional no caso concreto. A criatividade é um recurso proibido ou não sabido;
 6º) As contribuições que a administração e a economia podem oferecer para a otimização do sistema processual constituem anátemas ou tema que não diz respeito ao direito processual.

Que tal? Alguma inverdade flagrante? Apesar de todas as ressalvas que generalizações desse tipo merecem, elas compõem um retrato verossímil de como fazemos acontecer o direito processual civil. Muitas outras afirmações poderiam ser feitas a respeito. Uma visão mais larga e aprofundada sobre o paradigma racionalista do processo civil pode ser obtida com a indispensável leitura do livro do Prof. OVÍDIO BAPTISTA, acima indicado (e que carece de uma urgente nova tiragem!!).
O pragmatismo, veremos, é um método tipicamente antirracionalista. Essa é, ao meu ver, a principal característica que o qualifica para nos ajudar na transição para um novo paradigma do processo civil.
Mas, talvez alguém pergunte, o que é paradigma? 
Aguardem o  próximo post!! 

Nenhum comentário:

Postar um comentário